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SALVE AS LÍNGUAS QUE ESTÃO MORRENDO |
W. Wayt Gibbs
– Scientific American Brasil, agosto de 2002
Há
anos os lingüistas sabem que milhares de línguas do mundo
estão correndo risco de extinção. Apesar disso,
só recentemente esse campo reuniu forças — e dinheiro
— para fazer algo a respeito.
É
óbvio que temos de repensar seriamente nossas prioridades para
que a lingüística não entre na história
como a única ciência que assistiu despreocupadamente
ao desaparecimento de 90% do campo a que se dedica.
MICHAEL KRAUSS, The World Language in Crisis (1992)
Há
dez anos, Michael Krauss assustou o campo da lingüística
com sua previsão de que metade das aproximadamente 6 mil línguas
faladas no mundo deixaria de existir em um século. Krauss,
professor de línguas da Universidade de Alaska-Fairbanks, fundou
o Alaska Native Languages Center (Centro de Línguas Nativas
do Alasca) na tentativa de preservar ao máximo as 20 línguas
que ainda são conhecidas pelos índios da região.
Só duas dessas línguas estavam sendo ensinadas às
crianças. Várias outras existiam somente na memória
de alguns velhos que as falavam. A situação do Alasca
representa uma tendência global, observou Krauss na revista
da Sociedade Lingüística da América. A menos que
os cientistas e líderes comunitários façam um
esforço a nível mundial no sentido de sustar o declínio
das línguas locais, advertiu ele, provavelmente nove décimos
da diversidade lingüística da humanidade está fadada
a se extinguir.
Outros lingüistas respeitados têm feito advertências
semelhantes. Kenneth L. Hale, do Massachusetts Institute of Technology,
observou, no mesmo número da revista, que oito línguas
sobre as quais havia feito trabalho de campo já tinham se extinguido.
Uma pesquisa de 1990, feita na Austrália, descobriu que 70
das 90 línguas aborígenes restantes não são
mais usadas regularmente por todas as faixas etárias. O mesmo
se pode dizer de quase todas — as exceções são
apenas 20 — as 175 línguas dos nativos norte-americanos
faladas ou lembradas nos Estados Unidos.
Os especialistas do ramo lamentam a perda de línguas raras
por diversas razões. Em primeiro lugar, há o interesse
próprio da ciência: algumas das questões mais
básicas da lingüística estão relacionadas
com os limites da fala humana, que estão longe de terem sido
inteiramente explorados. Alguns pesquisadores gostariam de saber quais
elementos estruturais da gramática e do vocabulário
— se é que existem — são realmente universais
e, por isso, provavelmente resultantes de características do
cérebro humano. Outros tentam construir modelos de migrações
antigas, fazendo um levantamento de palavras emprestadas, que aparecem
em línguas sem qualquer outra ligação entre si.
Em ambos os casos, quanto maior a quantidade de línguas estudadas,
tanto maior a probabilidade de obter as respostas certas.
“Acho que o valor das línguas é basicamente humano”,
diz James Matisoff, um especialista em línguas asiáticas
raras da Universidade da Califórnia em Berkeley. “A língua
é o elemento mais importante da cultura de uma comunidade.
Quando ela morre, você perde o saber específico daquela
cultura e uma visão de mundo única.”
Em 1996, a lingüista Luisa Maffi ajudou a organizar um grupo chamado
Terralingua com a finalidade de chamar a atenção para
a conexão entre a diversidade lingüística e a biodiversidade,
que parece extremamente concentrada em muitos dos mesmos países.
Outro grupo internacional redigiu uma ambiciosa “declaração
universal dos direitos lingüísticos”. O texto foi
apresentado à Unesco em 1996, mas essa instituição
ainda não tomou nenhuma medida a respeito.
O
fim da apatia?
Na
verdade, apesar do estado de alarme quase permanente da lingüística
em relação a línguas que estão correndo
perigo de extinção, o campo conseguiu fazer muito pouco
a respeito. “Acho que devia haver uma reação organizada
a essa situação deprimente, uma tentativa de descobrir
quais línguas podem ser salvas e quais devem ser documentadas
antes de desaparecerem”, diz Sarah G. Thomason, uma lingüista
da Universidade de Michigan em Ann Arbor.
Há seis anos, lembra Douglas H. Whalen, da Universidade de
Yale, “quando perguntei aos lingüistas quem estava levantando
dinheiro para enfrentar esses problemas, a resposta da maioria foi
apenas um olhar desconcertado”. Por isso, Whalen e alguns outros
lingüistas criaram o Endangered Languages Fund (Fundo para as
Línguas em Perigo de Extinção). Mas, depois de
cinco anos, em 2001, só tinham conseguido levantar US$ 80 mil
para custear pesquisas. Uma fundação semelhante na Inglaterra,
dirigida por Nicholas Ostler, só levantou US$ 8 mil dólares
desde 1995.
Porém, há indícios animadores de que o campo
da lingüística está reagindo. A Fundação
Volkswagen, uma instituição filantrópica alemã,
acaba de aprovar sua segunda série de subvenções
à pesquisa, totalizando mais de US$ 2 milhões, diz Whalen.
Ela criou um arquivo multimídia no Instituto Max Planck para
Psicolingüística, na Holanda, que tem condições
de manter gravações, gramáticas, dicionários
e outros dados relativos a línguas em perigo de extinção.
Para alimentar o arquivo, a fundação enviou lingüistas
de campo para documentar o aweti (língua falada por aproximadamente
cem pessoas no Brasil), o ega (língua falada por cerca de 300
pessoas na Costa do Marfim), o waima’a (língua falada
por algumas centenas de pessoas no Timor Leste) e uma dúzia
de outras.
A Fundação Ford também fez incursões nesse
campo. Suas contribuições ajudaram a revigorar o programa
mestre-aprendiz, criado em 1992 por Jeanne Hinton, de Berkeley, e
outros lingüistas preocupados com o desaparecimento iminente
de cerca de 50 línguas indígenas na Califórnia.
Pessoas fluentes na língua recebem US$ 3 mil para ensinar sua
língua materna a um parente mais jovem (que também é
pago), por meio de 360 horas de atividades conjuntas distribuídas
ao longo de seis meses.
“E muito cedo para dar a isso o nome e revitalização
das línguas”, admite Hinton. “Na Califórnia,
a taxa de mortalidade dos velhos que falam sua língua fluentemente
sempre foi maior que a taxa de recrutamento dos jovens aprendizes.
Mas ao menos prolongamos a vida da língua.” O que vai
dar aos lingüistas mais tempo para registrar essas línguas
antes que elas desapareçam.
No mínimo 440 línguas estão restritas a um punhado
de velhos, segundo o Ethnologue, um catálogo de línguas
feito pelo Summer Institute of Linguistics (SIL), de Dallas, que é
o que temos de mais próximo de uma cobertura global. Em relação
à esmagadora maioria dessas línguas, há pouco
ou nenhum registro de sua gramática, vocabulário, pronúncia
das palavras e uso na vida cotidiana.
Para ajudar a preencher os espaços em branco, o Lisbet Rausing
Charitable Fund, uma nova instituição filantrópica
da Inglaterra, destinou US$ 30 milhões a um projeto maciço
de documentação. Barry Supple, um assessor dessa fundação,
afirma que o dinheiro provavelmente será distribuído
ao longo de 8 a 10 anos — a maior parte no trabalho de campo
propriamente dito.
Uma
nova Torre de Babel
O
projeto de documentação do Rausing tem uma magnitude
bem maior que qualquer outra proposta anterior. A grande prova será
saber se esse projeto vai conseguir coletar registros de todas essas
línguas de uma forma coerente e guardá-los num arquivo
seguro e acessível. “Os arquivos de que dispomos em geral
são pobres” diz Bird, que é diretor-adjunto do
Linguistic Data Consortium. “Não existe um único
arquivo que uma universidade ou fundação de ciência
natural tenha assumido o compromisso de manter indefinidamente —
durante 25 a 50 anos, digamos.” Ele adverte que as línguas
podem ser documentadas e logo em seguida perdidas novamente à
medida que o registro digital sucumbe à obsolescência.
Para complicar ainda mais as coisas, pelo menos 11 instituições
do mundo inteiro estão criando bibliotecas digitais para guardar
dados relativos a línguas em perigo de extinção.
Isso pode criar um outro tipo de Torre de Babel, pois o projeto não
tem coerência em termos de formatos para dados, terminologia
e até nomes de línguas.
Bird, Gary Simons do SIL e muitos outros estão trabalhando
no sentido de pôr uma certa ordem nesse caos com a construção
de uma “Comunidade Aberta de Arquivos de Línguas”
(CAAL) — uma espécie de catálogo digital —
para reduzir essas incoerências. Lançada nos Estados
Unidos em janeiro deste ano e na Europa em junho, a CAAL já
tem repertórios de mais de 17 línguas, muitas das quais
em perigo de extinção. Quando o sistema entrar em funcionamento
no ano que vem, vai permitir aos pesquisadores investigar uma grande
quantidade de dados para checar suas teorias sobre a evolução
das línguas, sobre como a confluência das línguas
reflete a migração de povos e sobre os limites da fala
humana.
Afinal de contas, essas são as principais questões que
os lingüistas receiam que se tornem irrespondíveis com
a perda de línguas raras. A lingüística é
uma ciência jovem e ainda cheia de mistérios. Ostler
dá um exemplo: “Ica, uma língua falada no norte
da Colômbia, parece não ter nada comparável a
sistema de pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós,
eles. Não fosse essa língua, eu acharia que os pronomes
são um elemento lingüístico universal.”
Bird tem fascínio pela reduplicação: uma característica
de numerosas línguas, segundo a qual uma repetição
indica um plural (como se o plural de rã fosse rã-rã).
O luchotsid, uma língua quase extinta da área de Puget
Sound (uma ilhota do Pacífico a noroeste de Washington), é
praticamente a única a usar a reduplicação com
outros fins que não o plural, diz Bird. “Se línguas
como essas desaparecem, nunca vamos saber quais são os limites
da forma de usar a reduplicação em línguas vivas.”
Ou então pense sobre um outro enigma da variação
plural. Em muitas línguas, como o inglês, a maioria das
palavras são singular ou plural. Mas algumas, como a língua
aborígene australiana ngan’gitjemerri (provavelmente
extinta há pouco tempo), tem quatro formas para todo substantivo:
singular, dual (dois do mesmo tipo), tríplice e plural. O sursurunga, o
tanga e o marchalês têm cinco formas. Qual é o
limite? Talvez já seja muito tarde para sabermos.
Esqueleto
fossilizado
Mesmo
que uma língua tenha sido inteiramente documentada, tudo quanto
resta depois que ela se extingue é um esqueleto fossilizado,
um monte de cacos que o cientista teve sorte e inteligência
suficiente para juntar. Os lingüistas podem traçar as
linhas gerais de uma língua esquecida e determinar seu lugar
na árvore evolutiva, mas não podem fazer muito mais
que isso. “Como as pessoas entabulavam uma conversa e falavam
com os bebês? Como os maridos e as mulheres conversavam entre
si?” pergunta Hinton. “Essas são as primeiras coisas
que você tem de aprender se quiser revitalizar uma língua.”
Mas ainda não existe uma disciplina de “preservação
lingüística”, como existe na área da biologia.
Quase todas as estratégias experimentadas até agora
deram certo em alguns lugares e fracassaram em outros, e parece não
haver forma de prever com certeza o que vai funcionar. Há 20
anos, as comunidades neozelandesas que falavam o maori criaram os
“ninhos da língua”, onde as crianças em
idade pré-escolar eram imersas na sua língua materna.
Cursos extras dados somente em maori foram sendo criados à
medida que as crianças avançavam pelo ensino fundamental
e médio. Algo parecido foi tentado no Havaí, com um
certo êxito — o número de pessoas que falam o havaiano
estabilizou-se por volta de mil, diz Joe Grimes, do SIL, que trabalha
em Hilo. Agora os alunos podem estudar em sua língua materna
até chegar à universidade (mas eles também aprendem
inglês).
É cedo demais para dizer se essa primeira geração
chocada no ninho vai falar sua língua materna com os filhos
em casa. E escolas de imersão na língua local fundadas
em outros lugares enfrentaram resistência tanto dentro quanto
fora da comunidade. Só uma outra língua indígena,
o navajo, é ensinada dessa forma nos Estados Unidos, segundo
o Center for Applied Linguistics. A Leupp Public School, na reserva
navajo do Arizona, deu início a um programa de imersão
depois que uma pesquisa mostrou que apenas 7% dos alunos sabia falar
o navajo fluentemente. As crianças — no começo
alunos de jardim da infância, mas que agora já chegam
à quarta série — usam a língua quando estão
cuidando de seus carneiros e ovelhas, das hortas e jardins, realizando
as danças tradicionais e no aprendizado de outros aspectos
de sua cultura. Mas o programa tem tido dificuldade para encontrar
professores qualificados, para conseguir livros didáticos e
provas em navajo e para granjear apoio suficiente junto à comunidade.
Ofelia Zepeda, da Universidade do Arizona, que talvez seja a mais
ilustre defensora nativa do ressurgimento das línguas indígenas
nos Estados Unidos, descreve problemas semelhantes com sua própria
língua, o tohono o’odham. Como todas as tribos do país,
nosso problema é que toda uma geração de crianças
não fala a sua língua materna”, afirma. “A
liderança apóia as iniciativas em relação
à preservação da língua, mas o problema
é o financiamento. Estou esperando há três anos
para dar início a nossos projetos.”
Só porque uma comunidade lingüística é pequena
não significa que esteja condenada à morte. No último
relatório recebido, diz Akira Yamamoto, da Universidade do
Kansas, havia apenas 185 pessoas que falavam caritiana. Mas todas
elas moravam no mesmo povoado brasileiro, que tinha somente 191 habitantes.
Portanto, mais de 96% da população ainda falava a língua
e a ensinava a seus filhos. Como as pesquisas sobre línguas
em perigo de extinção tendem a considerar apenas o número
de pessoas que falam uma certa língua, “tem havido casos
de lingüistas que previram a morte de uma língua e, ao
voltar à região onde era falada 20 anos depois, encontrarem-na
vivíssima”, informa Patrick McConvell, do Australian
Institute for Aboriginal and Torres Strait Islander Studies, de Camberra.
Um fator que sempre parece se manifestar na morte de uma língua,
segundo o teórico Hans-Jürgen Sasse, da Universidade de
Colônia, na Alemanha, é que as pessoas que a falam começam
a “ter dúvidas coletivas sobre a utilidade de se manterem
fiéis a ela”. Depois que passam a considerar sua própria
língua inferior à língua da maioria, param de
usá-la, seja qual for a situação. As crianças
acabam adotando a mesma atitude e passam a dar preferência à
língua dominante. “Em muitos casos, as pessoas não
percebem, até que de repente se dão conta de que seus
filhos nunca falam a sua língua, nem mesmo em casa”,
diz Whalen. É por isso que o gaélico escocês entrou
em processo de extinção, observa Sasse. E, apesar de
seu status de língua oficial, o uso do gaélico irlandês
declinou desde a criação do Estado da Irlanda, diz Ostler.
“Em última instância, a resposta ao problema da
extinção das línguas é o poliglotismo”,
afirma Matisoff, e muitos lingüistas concordam. “Até
pessoas sem instrução conseguem aprender várias
línguas, desde que comecem quando crianças”, diz
ele. Na verdade, a maioria das pessoas do mundo fala mais de uma língua,
e em lugares como Camarões (279 línguas), Papuásia,
na Nova Guiné (823), ou Índia (398), é comum
falar três ou quatro línguas, além de um ou dois
dialetos.
“A maioria dos norte-americanos e canadenses que vivem a oeste
de Quebec tem a reação instintiva de achar que qualquer
pessoa que fale outra língua na sua frente está cometendo
um ato imoral”, observa Grimes. “Você vê a
mesma reação na Austrália e na Rússia.
Não é mero acaso o fato de estas serem as regiões
em que as línguas estão desaparecendo mais rapidamente.”
O primeiro passo para salvar as línguas que estão morrendo
é convencer as maiorias mundiais a permitirem que as minorias
à sua volta se expressem com a sua própria voz.
Para
conhecer mais
The
Green Book of Language Revitalization in Practice, organizadores.
Leanne Hinton e Kenneth Hale, Academic Press, 2001.
On Biocultural Diversity, organizadores Luisa Maffi, Smithsonian
Institution Press, 2001.
Ethnologue: www.ethnologue.com
Ensino de línguas indígenas: http://jan.ucc.nau.edu/ffjar/TIL.html